As metas de qualidade de água estabelecidas pelo
enquadramento de corpos de água em classes de qualidade, de acordo com seus
usos preponderantes, foram fixadas com orientações de duas resoluções: uma do
CONAMA, que estabelece as suas bases ambientais, e outra do CNRH, que
estabelece os seus procedimentos operacionais. Ambas as resoluções trazem
orientações cabíveis sob o ponto de vista teórico. Contudo, alguns aspectos são
de difícil abordagem, sob o ponto de vista prático. Isto faz com que sejam
abertas possibilidades de interpretações mais rigorosas, ao pé da letra fria
das resoluções, especialmente por não especialistas em recursos hídricos. O que
intimida setores usuários que poderão ser cobrados pelo cumprimento da
efetividade do enquadramento, com potenciais prejuízos aos seus interesses.
Como resultado, esses usuários acabam por se opor à aprovação do enquadramento,
não necessariamente por que se oponham ao alcance de metas de qualidade desejáveis,
mas por terem dificuldades de operar no ambiente de grandes incertezas, que
ocorre na gestão de qualidade de água.
O enquadramento como metas de qualidade a ser alcançada em determinado prazo
No que se refere às bases ambientais é de interesse dessa
inserção aquelas que são dispostas pela Resolução CONAMA 357/2005 no Capitulo V
- Diretrizes ambientais para o enquadramento; os destaques são meus:
Art.
38. O enquadramento dos corpos de água dar-se-á de acordo com as normas e
procedimentos definidos pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH e
Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.
§ 1o
O enquadramento do corpo hídrico será definido pelos usos
preponderantes mais restritivos da água, atuais ou pretendidos.
§ 2o
Nas bacias hidrográficas em que a condição de qualidade dos corpos de
água esteja em desacordo com os usos preponderantes pretendidos, deverão
ser estabelecidas metas obrigatórias, intermediarias e final, de melhoria da
qualidade da água para efetivação dos respectivos enquadramentos,
excetuados nos parâmetros que excedam aos limites devido as condições
naturais.
§ 3o
As ações de gestão referentes ao uso dos recursos hídricos, tais
como a outorga e cobrança pelo uso da água, ou referentes a gestão ambiental,
como o licenciamento, termos de ajustamento de conduta e o controle da
poluição, deverão basear-se nas metas progressivas intermediarias e final
aprovadas pelo órgão competente para a respectiva bacia hidrográfica ou corpo
hídrico especifico.
§ 4o
As metas progressivas obrigatórias, intermediarias e final, deverão
ser atingidas em regime de vazão de referencia, excetuados os casos de
baias de águas salinas ou salobras, ou outros corpos hídricos onde não seja
aplicável a vazão de referência, para os quais deverão ser elaborados estudos
específicos sobre a dispersão e assimilação de poluentes no meio hídrico.
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Portanto,
cabe no processo de enquadramento o estabelecimento de metas obrigatórias,
intermediárias e final, as quais, por sua vez, orientarão as outorgas, cobrança
e licenciamento ambiental. Também fala de um “regime de vazão de referência”
onde as metas devam ser atingidas, reconhecendo que como as condições de fluxo
de água variam com o tempo, que algum regime deveria ser estabelecido para que uma
qualidade igual ou melhor que a especificada no enquadramento ocorresse.
Sobre as medidas para alcance das metas de qualidade de água
A Resolução CNRH 91/98 estabelece as condições de operacionalização
das metas progressivas, intermediárias e final,em seus artigos 6º e 7º:
Art.
6º As propostas de metas relativas às alternativas de enquadramento deverão
ser elaboradas com vistas ao alcance ou manutenção das classes de
qualidade de água pretendidas em conformidade com os cenários de curto, médio
e longo prazos.
§
1º As propostas de metas deverão ser elaboradas em função de um conjunto de
parâmetros de qualidade da água e das vazões de referência definidas para o
processo de gestão de recursos hídricos.
§
2º O conjunto de parâmetros de que trata o §1º deste artigo será definido em
função dos usos pretensos dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos,
considerando os diagnósticos e prognósticos elaborados e deverá ser utilizado
como base para as ações prioritárias de prevenção, controle e recuperação da
qualidade das águas da bacia hidrográfica.
§
3º As metas deverão ser apresentadas por meio de quadro comparativo entre
as condições atuais de qualidade das águas e aquelas necessárias ao
atendimento dos usos pretensos identificados.
§
4º O quadro comparativo deve vir acompanhado de estimativa de custo para a
implementação das ações de gestão, incluindo planos de investimentos e
instrumentos de compromisso.
Art.
7º O programa para efetivação do enquadramento, como expressão de
objetivos e metas articulados ao correspondente plano de bacia hidrográfica,
quando existente, deve conter propostas de ações de gestão e seus prazos
de execução, os planos de investimentos e os instrumentos de compromisso
que compreendam, entre outros:
I
- recomendações para os órgãos gestores de recursos hídricos e de meio
ambiente que possam subsidiar a implementação, integração ou adequação de
seus respectivos instrumentos de gestão, de acordo com as metas
estabelecidas, especialmente a outorga de direito de uso de recursos hídricos
e o licenciamento ambiental;
II
- recomendações de ações educativas, preventivas e corretivas, de
mobilização social e de gestão, identificando-se os custos e as principais
fontes de financiamento;
III
- recomendações aos agentes públicos e privados envolvidos, para viabilizar o
alcance das metas e os mecanismos de formalização, indicando as atribuições e
compromissos a serem assumidos;
IV
- propostas a serem apresentadas aos poderes públicos federal, estadual e
municipal para adequação dos respectivos planos, programas e projetos de
desenvolvimento e dos planos de uso e ocupação do solo às metas estabelecidas
na proposta de enquadramento;e
V
- subsídios técnicos e recomendações para a atuação dos comitês de bacia
hidrográfica.
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Portanto, nos cenários de curto, médio e longo prazos,
deverão ser alcançadas metas; supõe na hipótese mais longa de alcance da meta
final de enquadramento metas intermediárias deverão ser propostas para alcances
nos curto e médio prazo, e a meta final no horizonte de longo prazo (art. 6º.).
Mais: um quadro comparativo deverá ser apresentado com a qualidade atual, a
qualidade a ser atingida nas metas atreladas às cenas de curto, médio e longo
prazos, com os custos das “ações de gestão”, planos de investimento e
instrumentos de compromisso (art. 6º., § 3º. e 4º.), além de prazos de execução
das ações, e recomendações de ações educativas, preventivas e corretivas, de
mobilização social e de gestão, com custos e fontes de financiamento (art. 7º.,
caput e inc. II).
As dificuldades de haver rigor na fixação de prazos para alcance das metas de qualidade
Como já comentei, seria possível atender estas exigências
se:
- fosse possível calibrar um modelo matemático de simulação da qualidade de água razoavelmente preciso aos corpos de água da bacia;
- e se fossem conhecidos os impactos de ações preventivas e corretivas na qualidade de água.
Quanto ao impacto das ações preventivas e corretivas sabe-se
com precisão razoável a eficiência de remoção de poluentes de estações de
tratamento de efluentes. Pouco se sabe sobre eficiências na remoção de
poluentes de outras medidas preventivas, que se julga relevantes para alcance
das metas de qualidade, como recomposição de matas ciliares, cercamento de
nascentes e obstáculos à entrada de animais nos corpos de água, importantes
para controle da poluição difusa de origem rural.
Isto mostra que este preciosismo com que as resoluções
tratam do enquadramento é inalcançável a não ser que os planos de bacia
prevejam campanhas de monitoramento como comentado, o que elevará substancialmente
seus custos, e pesquisas avaliem as eficiências das medidas de controle da
poluição difusa rural.
No entanto, cabe refletir: seria justificável tratar desta
forma planos de investimento em futuros de médio e longo prazos, quando várias
incertezas existem quanto aos mesmos, em termos de aumento de população e de
atividade econômica na bacia? Não seria perda de tempo e de recursos tratar com
tal expectativa de precisão situações que provavelmente fujam das tendências a
serem consideradas? Acredito que sim.
O impacto em distintas categorias de usuários de água como destino final de seus efluentes
Olhando agora pelo lado dos usuários de água da bacia.
Podemos dividi-lo em três grupos que usam a capacidade de assimilação de
resíduos dos corpo de água (expressão menos traumática que poluidores): os
responsáveis pelo poluição urbana; os responsáveis pela poluição rural e os
responsáveis pela poluição industrial.
O primeiro grupo, o dos cidadãos (nome que em sua origem
queria dizer moradores das cidades) deve controlar suas poluições por meio de
sistemas pontuais de coleta e tratamento dos esgotos nas chamadas ETEs, implantados
e operados diretamente pelos municípios, por departamentos municipais de
esgotos, ou por concessionárias municipais. O segundo grupo, de moradores
rurais, agricultores em geral, devem tratar seus poluentes por medidas
dispersas de tratamento, geralmente individuais. O terceiro grupo, por meio de
estações de tratamento de efluentes industriais, que geralmente são exigidas já
no processo de licenciamento ambiental.
Vamos supor que exista um enquadramento como previsto nas
resoluções e que um procurador do Ministério Público, federal ou estadual,
resolva acompanhá-lo. O que ele fará, inevitavelmente,
será acrescentar ao quadro que a Resolução CNRH 91/98 a coluna da qualidade de
água corrente no ano em que foi considerado o curto, o médio ou o longo prazo. Se
esta não estiver de acordo com as metas intermediária ou final, ele sairá atrás
dos culpados pela poluição além do que foi estipulado. Para quem vai sobrar a
conta a pagar? Ele até pode penalizar a cidade, responsabilizando o município
ou a concessionária municipal; vai ficar perdido com o que fazer no meio rural,
tantos são os indivíduos, suas relativas dificuldades de implementarem suas
soluções. Mas será muito fácil responsabilizar indústrias, com
lançamentos pontuais e capacidades de pagamento supostas razoáveis. É óbvio:
entre fechar uma cidade, uma propriedade rural ou uma indústria à qual possa ser
atribuída a causa da poluição qual é a alternativa mais fácil e politicamente
mais viável e que contará com maior apoio popular?
Por outro lado, vamos considerar a situação dos órgãos responsáveis pelo
licenciamento ambiental e pela outorga de lançamentos poluentes no meio hídrico
em um trecho de um corpo de água cuja qualidade está pior do que aquela
estabelecida pelo enquadramento. Eles não podem negar licenças ambientais ou as outorgas à cidade, pois o seu crescimento não é matéria de uma licença, e a
negativa de descarga de volumes adicionais de poluentes gerados na cidade
equivaleria a não se ter onde dispor este esgoto adicional, criando problemas
sociais e políticos. Licenças para aumentar o rebanho animal também não são
demandadas para pecuária extensiva e tão pouco para incremento da área
cultivada. As outorgas de lançamento também em grande parte serão inaplicáveis,
pois a maioria dos causadores é considerada insignificantes, embora a soma dos
efeitos de todos os usuários insignificantes seja significativa. Já a indústria
...
Por que a indústria tem medo do enquadramento?
Daí a resposta à pergunta-título desta
inserção: a indústria tem medo do enquadramento. E é normal e compreensível que
se oponha, ou que exija maior precisão na elaboração dos estudos que levem à
sua proposta, aparentemente paralisando o processo. Existe uma assimetria no
tratamento entre os três grupos mencionados, em desfavor ao usuário industrial
que nem sempre é o maior responsável pela poluição.
Existe solução para estes impasses?
Com solucionar este problema? Novamente, devemos nos mirar
no exemplo francês, que a partir de 1964 implantou o sistema que foi nossa
inspiração, e que se tenta implantar desde 1997, 33 anos depois. No que se
refere à qualidade de água este sistema propõe um enquadramento similar ao
nosso; mas sem prazo para ser alcançado. Existe, quando muito,um firme
propósito de que a qualidade de água deva melhorar continuamente. No lado
operacional, as Agências de Águas francesas detectam o que chamam de “pontos
negros” da rede de drenagem, onde a qualidade corrente acha-se mais afastada da
qualidade-meta do enquadramento. Propõem nos planos de bacia medidas para
reduzir esta defasagem, de acordo com as possibilidades de suporte aos custos
de investimento. Que por sinal são maiores que as do Brasil, em função de um sistema
de cobrança pelo uso da água mais efetivo em termos de arrecadação de recursos,
seja por cobrar valores maiores, seja por contar com atividades econômicas com
maiores capacidades de pagamento nas bacias, como regra geral.
Portanto, acho um
erro as resoluções que tratam do enquadramento na Brasil exigirem rigores
desnecessários e inalcançáveis, quando o exemplo que nos inspira fugiu
claramente desta postura cartorial, tão arraigada em nossa cultura. Não se pode
judicializar o enquadramento, como aqui se ameaça, mas considerá-lo um acordo
da bacia, a ser implementado gradualmente, sem prazos para seu alcance. Os
critérios para licenciamento e para outorga de lançamentos poderão ser regrados
pelas metas de qualidade, mas sempre considerando as diversas consequências e,
obviamente, ouvido o comitê da bacia em consideração.
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