terça-feira, 4 de março de 2014

15 – A decepção da cobrança pelo uso de água

Havia grandes expectativas com relação ao instrumento de cobrança pelo uso de água. Em um texto de 2001 eu afirmava: “É necessário entender que o gerenciamento de bacias hidrográficas comporta investimentos de grande monta, seja em medidas estruturais, tais como reservatórios, sistemas de abastecimento e de esgotos, de irrigação, criação e fiscalização de reservas, etc., seja em medidas não estruturais voltadas à consecução do gerenciamento propriamente dito, na forma de operação de entidades devidamente equipadas de pessoal e material, promoção de programas de extensão rural e educação comunitária, etc. Não se pode pretender que toda a sociedade pague por isso através de impostos mas, ao contrário, que parcela substancial dos recursos financeiros seja gerada na própria bacia, onde se encontram os beneficiários diretos dos investimentos. Duas das formas de geração de recursos financeiros são a cobrança pelo uso da água e, mais diretamente, o rateio das obras de interesse comum entre seus beneficiários. A execução destes instrumentos de participação financeira nos investimentos pode ser facilitada na medida que seu estabelecimento e aplicação sejam realizados com ampla participação dos envolvidos. Esta é mais uma das justificativas para a criação do colegiado da bacia.[1]
Entretanto, os resultados da aplicação deste instrumento são decepcionantes se comparados ao que se almejava, como acima foi disposto. Esta decepção será historiada e analisada a seguir.

Histórico da implantação da cobrança pelo uso de água no Brasil

A Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul detém a primazia de implantação da cobrança pelos usos de água bruta de domínio da União no país. Sua experiência foi iniciada em março de 2001, quando o Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul - CEIVAP aprovou a proposta inicial de cobrança, submetendo-a ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que a aprovou em 2002. Sua implantação foi iniciada em março de 2003.
Posteriormente, foi iniciada a cobrança pelos usos da água nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) que, aparentemente, se inspirou nos critérios adotados pelo CEIVAP, aperfeiçoando-os, e apresentando uma formulação mais inovadora e completa, aprovada no final de 2005 pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos[2]. Tendo por base esse avanço promovido pelo PCJ, o CEIVAP promoveu estudos que apresentaram novos critérios de cobrança em 2006, com grande similaridade com os critérios adotados pelo PCJ, um ano antes, passando a implementá-los a partir de 2007.
Adiante, o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, por meio da Resolução nº 40 de maio de 2009, e o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Doce, mediante a Deliberação 26 de 31 de março de 2011, aprovaram os mecanismos e valores de cobrança pelos usos de suas águas de domínio federal. Os estudos que levaram às citadas Resolução/Deliberação observaram as experiências já implementadas no Brasil em rios federais e, como resultado, as propostas aprovadas mostram pontos de contato com os critérios adotados pelo CEIVAP e pelo PCJ.
Desta maneira, o que se constata na avaliação dessas experiências de cobrança pelos usos de águas de domínio federal é que não existe o processo do CEIVAP, outro do PCJ e mais um do São Francisco e Doce. O que existe é um único processo de implantação da cobrança pelo uso de água no Brasil, que foi iniciado pelo CEIVAP, aperfeiçoado pelo PCJ, acatado em grande parte pelo CEIVAP em um segundo momento, e que inspirou os Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios São Francisco e Doce, após adaptações condizentes com a sua realidade. Esta integração de esforços é louvável, e o papel integrador nele exercido pela Agência Nacional de Águas – ANA não pode ser ignorado. Mas, também, deve ser ressaltada a decisão dos comitês envolvidos em buscar o que melhor se ajusta às suas realidades, sem querer “descobrir a roda”, e adaptando o que melhor existe na experiência nacional.

Águas de domínio estadual

A primeira experiência de cobrança pelo uso de água no Brasil, no âmbito de um sistema estadual de gerenciamento de recursos hídricos, foi implantada no Ceará em 1996, antecedendo, inclusive, a cobrança em águas da União da bacia do Paraíba do Sul. No entanto, cabe observar que, a rigor, cobra-se pelos serviços de suprimento de água por meio de um sistema de açudes. Isto configura uma cobrança pela prestação de um serviço, algo comum, que já era previsto na antiga Política Nacional de Irrigação, diferindo da cobrança pelos usos da água no ambiente, que é a novidade apresentada pelas políticas nacional e estaduais de recursos hídricos no país[3].
Por isto, considera-se como experiências de cobrança pelos usos de águas estaduais as dos estados de Rio de Janeiro, de São Paulo e, mais recentemente, de Minas Gerais, vinculada à experiência do PCJ.

Rio de Janeiro

A Política de Recursos Hídricos no Estado do Rio de Janeiro foi instituída por meio da Lei no 3.239, de 2 de agosto de 1999, e considera a cobrança pelos usos de recursos hídricos como um de seus instrumentos de gestão.
O início da cobrança no Estado foi precedido da experiência pioneira na Bacia do Paraíba do Sul e de extensas discussões no CEIVAP. Como resultado, a Resolução CERHRJ nº 6, de 29 de maio de 2003, autorizou a cobrança pelos usos dos recursos hídricos de dominialidade estadual integrantes da bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, a partir de 2004, considerando as condições, metodologia e valores definidos pelo CEIVAP. Posteriormente, por meio da Lei Estadual no 4.247, de 16 de dezembro de 2003, a cobrança pelos usos da água foi estendida a todo o estado do Rio de Janeiro, tendo como principais características:

  • 1. Critérios e valores iguais aos fixados pelo CEIVAP;
  • 2. Condicionamento à efetiva implantação dos comitês de bacia estaduais e à elaboração dos respectivos planos de bacia hidrográfica.
Ainda mais adiante, a Lei nº 5234, de 05 de maio de 2008 alterou a anterior em alguns detalhes. Algo relevante, é que em nenhuma norma legal foi estabelecido limite para uso da arrecadação da cobrança no financiamento da Agência de Bacia de cada Comitê. No Rio de Janeiro toda a arrecadação, com exceção de 10% que são destinados ao Órgão Gestor de Recursos Hídricos, poderia em tese ser destinada ao custeio da Agência, enquanto em outras Unidades da Federação existem limites da ordem de 7,5% a 8%.

São Paulo

A criação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos de São Paulo em novembro de 1987 iniciou o debate sobre a cobrança pelos usos da água no estado, levando a Constituição Paulista de 1989, em seu artigo 211, mencioná-la como um de seus instrumentos. Adiante, com a aprovação da Lei Estadual no 7.663/91, que instituiu a Política Estadual de Recursos Hídricos, que a prevê como um dos instrumentos de gestão das águas, consolidaram-se as contribuições iniciais para a intensificação dos debates nesta área.
Por iniciativa interna, o Departamento de Águas e Energia Elétrica – DAEE, promoveu, em 1991, o primeiro estudo de simulação de cobrança para a Bacia Hidrográfica do Rio Piracicaba, declarada crítica e considerada como modelo básico para fins de gestão por decreto do Governador do Estado, em 1988. Dentre outros tópicos, foram analisados os objetivos, as finalidades, os contribuintes e os preços da cobrança pelos usos da água, abordando ainda preço médio, redistribuição de custos incorridos, obtenção de eficiência econômica e estruturas de preços.
Seguindo as conclusões dos eventos anteriores, o DAEE contratou, por volta de 1996, estudos para a implantação da cobrança pelos usos da água no Estado de São Paulo. Posteriormente, em 2004, novo contrato foi firmado para elaborar a Regulamentação da Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos, dentro dos estudos do  Plano Estadual de Recursos Hídricos do quadriênio 2004/2007. Este último estudo serviu de subsídio para regulamentar, pelo Decreto SP nº 50.667, de 30 de março de 2006, a Lei Estadual nº 12.183, de 29 de dezembro de 2005, que estabeleceu as diretrizes para a implementação da cobrança no Estado de São Paulo.
A legislação estadual de recursos hídricos prevê ainda que o DAEE poderá cobrar pelos usos dos recursos hídricos nas bacias hidrográficas onde não existirem as Agências de Água e, com isso, poderá receber um percentual sobre a arrecadação, a título de custeio, de até 10% (dez por cento) do total arrecadado.
O Governo Estadual regulamentou a cobrança por meio da Lei Estadual no 12.183/05, com procedimentos para fixação de limites, condicionantes e valores. A lei também definiu que os usuários urbanos e industriais dos recursos hídricos ficariam sujeitos à cobrança efetiva a partir de 1º de janeiro de 2006, enquanto os demais usuários somente a partir de 1º de janeiro de 2010. A base de cálculo e condicionantes para a cobrança foram fixados na Deliberação CRH no 63/2006, e no Decreto no 50.667/06. Com base nessas regulamentações os Comitês PCJ decidiram por implementar a cobrança estadual paulista, nas bacias PCJ, através da Deliberação Conjunta dos Comitês PCJ no 48/2006, com redação alterada pela Deliberação “Ad-Referendum” dos Comitês PCJ no 53/2006, aprovada pelo Decreto Estadual no 51.449/2006. No trecho de dominialidade paulista da bacia do rio Paraíba do Sul a cobrança foi implementada pela Deliberação CBH-PS Nº 05/06, alterada pela Deliberação CBH-PS nº 07/06, aprovada pelo Decreto Estadual nº 51.450/2006.
No final de 2006 a proposta de cobrança pelo uso dos recursos hídricos de domínio do Estado de São Paulo nas Bacias PCJ foi aprovada pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos (Deliberação CRH nº 68/06), e autorizada através do Decreto Estadual no 51.449/2006. Após atualização de dados dos usuários, os Comitês PCJ iniciaram a cobrança em julho de 2007, com a emissão de aproximadamente 1.200 boletos bancários, sendo grande parte para usuários de águas subterrâneas. Também em julho, teve início a cobrança no CBH Paraíba do Sul, com a emissão de 231 boletos, dos quais os 46 apenas não foram pagos por problemas técnicos.

Minas Gerais

A experiência desse estado é recente e vinculada à porção mineira das bacias do Piracicaba, Capivari e Jundiaí – PCJ e às bacias dos rios das Velhas e Araguari. Em 2009 foram aprovados pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais os mecanismos de cobrança deliberados pelos respectivos Comitês de Bacia Hidrográfica e esta foi iniciada no primeiro semestre de 2010.
Na primeira bacia, a discussão sobre mecanismos de cobrança ocorreu no âmbito do Comitê da Bacia Hidrográfica dos rios Piracicaba e Jaguari (CBHPJ), criado com base na Lei Estadual no 13.199/99 e no Decreto Estadual no 44.433/07, sendo instalado em 27 de junho de 2008. Seguindo as normas legais, uma das primeiras deliberações do CBHPJ foi no sentido de indicar o Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Consórcio PCJ), para desempenhar, transitoriamente, as funções de Entidade Equiparada à Agência de Bacia Hidrográfica do CBHPJ.
Pelo fato de já existir a cobrança pelos usos da água nas bacias PCJ, desde 2005, em rios de domínio federal e, desde 2007, em rios de domínio estadual paulista e, também, pelo fato de que o Consórcio PCJ exerce, desde 2005, funções de Entidade Delegatária de Agência de Água, o CBHPJ pretende utilizar toda essa experiência acumulada na região para ser um dos primeiros comitês mineiros a implantar a cobrança pelos usos da água.
Mantendo a ideia de equidade entre os valores, os Comitês PCJ[4], por meio da Deliberação no 21 de 12/12/2008, estabeleceram os mecanismos e valores para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos de domínio do Estado de Minas Gerais na bacia hidrográfica dos rios Piracicaba e Jaguari (Bacia PJ). Essa deliberação foi aprovada no Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais (CERH-MG) em reunião de 26/3/2009. O CBHPJ já possui um Plano de Bacia aprovado e uma nova base cadastral dos usuários da região está em fase de conclusão.
De forma análoga, na bacia do rio Paraíba do Sul, outra bacia de rio federal onde a cobrança pelo uso da água já se acha implementada, existem iniciativas para início da cobrança pelos usos da água nas bacias dos afluentes mineiros dos rios Pomba e Muriaé, e Preto e Paraibuna.
Nas bacias dos rios das Velhas e do Araguari os referenciais adotados foram outros. A bacia do rio das Velhas tem em suas cabeceiras a região metropolitana de Belo Horizonte, sendo a sub-bacia de rio estadual de maior dinâmica econômica da bacia do rio São Francisco. Devido a fazer parte dessa bacia, o referencial adotado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do rio das Velhas foram os mecanismos de cobrança aprovados, mas que ainda não foram implementados, na bacia do rio São Francisco. Algumas alterações foram promovidas, entre as quais, as mais significativas foram a cobrança do setor mineração e do setor saneamento, como será comentado adiante.
Na bacia do rio Araguari uma outra realidade se apresentava, comparada com a bacia do rio das Velhas, face ao seu grande uso de água para irrigação. Semelhante à bacia do rio das Velhas, a bacia drena uma região metropolitana, a de Uberlândia, com altos níveis de industrialização e concentração urbana. Porém, face à intensidade da irrigação, o Comitê da Bacia optou por adotar o referencial dos Comitês PCJ, pois, como será visto adiante, de todos os mecanismos de cobrança adotados no Brasil é o que mais detalhadamente considera este tipo de uso.

Algumas conclusões possíveis

A análise das experiências brasileiras de cobrança pelos usos de água permite a constatação de que este instrumento ainda se encontra distante de se tornar relevante na engenharia financeira dos investimentos voltados à promoção de melhorias na bacia hidrográfica, em termos de quantidade e qualidade de água. Tão pouco pode ser apresentado como instrumento de racionalização econômica do uso de água, face aos valores insignificantes de cobrança praticados, fixados exatamente sobre a premissa de não causarem impactos significativos nos usuários. Estas constatações contrastam com o que dispõe a Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei Federal no. 9.433/97, que destaca: “Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I - reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II - incentivar a racionalização do uso da água; III - obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e  intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos”.
Os dois primeiros incisos não são observados exatamente pelo efeito direto da adoção da premissa de que o impacto da cobrança deve ser insignificante sobre o usuário de água. A inobservância do terceiro inciso decorre de efeito indireto da mesma causa: por ser insignificante a cobrança, a arrecadação é vastamente inferior às demandas de investimento nas bacias hidrográficas.
Para que seja alcançado o que é disposto na lei, haveria necessidade de significante aperfeiçoamento nos mecanismos de cobrança. Haveria possibilidade disto ocorrer? Esta questão será analisada na próxima inserção.



[1] Lanna, Antonio Eduardo. Instrumentos de planejamento e gestão ambiental para a Amazônia, Cerrado e Pantanal : demandas e propostas : metodologia de gerenciamento de bacias hidrográficas. Brasília : Ed. IBAMA, 2001. 59p. (Série meio ambiente em debate ; 36)
[2] Esta impressão decorre de que os critérios de cobrança que estavam sendo discutidos em São Paulo na época eram mais distintos dos que foram aprovados no PCJ do que os aplicados no CEIVAP.
[3] Isto, obviamente, não reduz a relevância da implantação deste tipo de cobrança no estado do Ceará, com base na qual foi criado e até hoje é mantido parte substancial de seu Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
[4] Denomina-se Comitês PCJ ao conjunto dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, criados e instalados segundo a Lei Estadual SP n° 7.663/91 (CBH-PCJ), a Lei Federal n° 9.433/97 (PCJ FEDERAL) e o Comitê da Bacia Hidrográfica dos Rios Piracicaba e Jaguari, criado e instalado segundo a Lei Estadual MG n° 13.199/99 (CBH-PJ).

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