terça-feira, 4 de março de 2014

16 – Reflexões sobre a cobrança pelo uso de água

A inserção anterior apresentou um panorama crítico e algo pessimista sobre este instrumento de gerenciamento de recursos hídricos. Nesta postagem serão realizadas algumas reflexões e propostas de abordagem que poderão resolver parte dos impasses observados.

Sobre a viabilidade de mecanismos econômicos incitativos

O ideal econômico de que a cobrança pelo uso de água possa ser uma forma de incentivo para a redução do uso de água, seja por meio de captação e consumo, seja por meio de lançamento de efluentes no meio hídrico, não se aplica no Brasil. Os valores de cobrança têm sido resultados de consensos que são alcançados em negociações que envolvem os membros dos comitês: governo, sociedade e usuários de água. E esses consensos são obtidos com valores que pouco afetam o equilíbrio econômico e o fluxo financeiro dos usuários de água, facilitando suas aprovações. Ou seja, parte-se nesses dois sistemas, explícita ou contingencialmente, que a cobrança não pode impactar o usuário de água. Algumas considerações sobre as razões desta situação e como superá-la serão a seguir apresentadas.

É possível um colegiado de usuários consensuar valores incitativos de cobrança?

Esta parece ser uma questão fundamental: seria possível em um colegiado do qual participem os usuários-pagadores de água serem consensuados valores incitativos de cobrança? Obviamente, os usuários de água não aprovariam valores de cobrança que os incitem ou, melhor dizendo, que os obriguem, por meio de impactos econômico e financeiro, a alterarem seus usos de água, para reduzirem tais impactos. Possivelmente, eles estariam mais propensos a aprovar mecanismos voluntários[1] de redução do uso de água, sem que a ameaça de uma cobrança realmente impactante pairasse sobre suas cabeças. Isto por pelo menos duas razões: por um lado, a baixa disposição a aprovar restrições à própria atividade econômica; por outro lado, a dificuldade de uma ação solidária em um ambiente econômico competitivo, gera receios quanto à possibilidade de que o pagamento realizado possa ser aplicado nas atividades de outros agentes, mesmo que sendo respaldado por um plano de bacia aprovado pelo respectivo do comitê. 

Alternativa: imposição de valores incitativos de cobrança por maioria de votos no Comitê de Bacia Hidrográfica

A aprovação de mecanismos econômicos incitativos em colegiados dos quais participem usuários-pagadores de água parece ser possível apenas nos casos em que o governo e sociedade formem uma aliança e imponham, por maioria de votos, esta situação aos usuários de água. Porém, este tipo de aliança apresenta certa fragilidade: muitos representantes da sociedade entenderiam que a cobrança incitativa acabaria por afetar o custo dos produtos que consomem, para os quais a água entra como insumo. E muitos setores governamentais acabariam mais propensos a se aliarem aos argumentos do poder econômico dos usuários de água – vale dizer, indústrias, empresas de saneamento, irrigantes, etc. – do que a organizações da sociedade.
Diante disto, não causa surpresa que na França, após quase 50 anos de implantação do sistema, os valores cobrados careçam do poder incitativo. E tudo indica que no Brasil, nada diferente ocorrerá. O que se verifica em exemplos de cobrança realmente incitativa pelo uso de água, como na Alemanha e nos Países Baixos, é que ela é decidida pelo poder legislativo, colegiado nos quais interesses mais amplos da sociedade, envolvendo futuras gerações, podem ser, aparentemente, melhor considerados.

Metas socialmente compartilhadas como incentivo ao aumento da cobrança

Neste aspecto cabe uma expectativa: que a prática atualmente adotada nos comitês das bacias hidrográficas onde a cobrança foi implantada, voltada a fixar um valor a ser cobrado tendo por base basicamente o baixo impacto nos usuários, possa ser substituída pela prática mais afeta ao exemplo francês, de estimar os investimentos necessários para melhorias na bacia e fixar a cobrança tendo eles por referencial. Parece mais aceitável que tendo esses investimentos por referência, e o impacto nos usuários como uma análise realizada em um segundo momento, seja possível atingir-se um espírito de solidariedade na bacia no qual valores de cobrança possam, em primeiro lugar, sustentar programas de recuperação ambiental na bacia e apenas em um segundo momento sejam considerados os impactos nos usuários. Em outras palavras, se o único referencial for o baixo impacto da cobrança não existem motivos para a expectativa de que o valor arrecadado seja significativo face às demandas de investimento.
Mesmo nesta situação, porém, que é estimulada por uma meta socialmente compartilhada a ser alcançada, como as melhorias na bacia, cabe alguma dúvida a respeito de sua funcionalidade para tornar a cobrança pelo uso da água relevante na engenharia financeira dos investimentos na bacia. Parte significativa dos usuários de água de uma bacia a usa como fator de produção e não bem de consumo. Portanto, uma melhoria das condições da bacia apenas afetaria favoravelmente esses usuários caso fossem melhoradas as condições de oferta do fator de produção água, em qualidade ou quantidade. Em pelo menos duas situações este atributo poderia não valer:
1.    Nos casos que o principal fator de produção utilizado fosse a destinação final de resíduos nas águas, as melhorias na bacia em nada afetariam esses usuários. A não ser que políticas rígidas de controle de poluição fossem adotadas, limitando severamente os lançamentos à capacidade dos corpos hídricos assimilarem resíduos. Nesse caso, instrumentos de comando-e-controle, como a outorga de lançamentos, deveriam ser aplicados de forma rigorosa para incitar os usuários afetados a aceitarem valores de cobrança que permitam acréscimos nos seus lançamentos.
2.    Outro caso ocorreria quando o fator de produção utilizado é água em quantidade, não havendo exigências sobre sua qualidade. Isto poderia ocorrer em casos de refrigeração de caldeiras ou em hidrelétricas. Esses usuários não estariam motivados a serem impactados pela cobrança que permitisse a melhoria de qualidade de água, pois para eles água em qualidade não constitui um fator de produção. Apenas nos casos em que a água se tornasse escassa em quantidade eles estariam propensos a serem onerados significativamente para que fossem promovidos os investimentos voltados ao aumento das disponibilidades.

Alternativas: uso conjunto de cobrança e subsídios, e instrumentos comando-e-controle

A experiência francesa demonstra as vantagens de um mecanismo de cobrança - mesmo pouco incitativo, mas com valores superiores aos adotados no Brasil - associado a um mecanismo de subsídios: os investimentos necessários para diminuir a poluição são facilitados pelos financiamentos a fundo perdido ou empréstimos sem juros das agências. Isto facilitou a aceitação do sistema de cobrança por alguns setores, como o de saneamento, que de uma posição contrária ao pagamento pelo uso da água, passou a aprovação, face à possibilidade de financiar seus investimentos com recursos financeiros obtidos em condições mais vantajosas dos que as linhas de crédito que lhe eram disponibilizadas.
Vale lembrar que no caso da França, como no Brasil, os instrumentos econômicos se somam, mas em caso nenhum substituem, aos instrumentos de comando-e-controle (outorga, licenciamento ambiental, etc.). Neste contexto, o mecanismo conjugado de cobrança e distribuição de subsídios pode ser considerado como um facilitador para tornar economicamente viáveis os investimentos necessários para cumprir uma legislação ambiental e de recursos hídricos cada vez mais exigentes, visando ao alcance de metas de qualidade ambiental e das águas, por meio de instrumentos comando-e-controle.
Além do aspecto econômico, a cobrança possui um papel pedagógico, na medida em que explicita as consequências de uma determinada atividade sobre os recursos hídricos. Assim, mesmo sem ser economicamente incitativa, a cobrança pode promover uma tomada de consciência e constituir o ponto de partida para uma mudança de atitude de usuários.
Pode ser sugerido que os usuários de água poderiam aceitar impactos relevantes da cobrança quando fosse necessária uma ação conjunta dos usuários de água da bacia voltada a melhorias das disponibilidades quantitativas ou qualitativas de água, face à:
1.    Situação natural de escassez hídrica;
2.    Uso estrito dos instrumentos comando-e-controle  - licenciamento e outorga de lançamento de poluentes - voltado a assegurar o alcance das metas de qualidade estabelecidas pelo enquadramento de corpos de água, resultando em restrições severas aos lançamentos de poluentes nos corpos de água;
3.    Adoção pelos usuários de água de políticas de responsabilidade social associadas a mecanismos de adesão voluntária, voltadas a contribuir para as melhorias da bacia.
Obviamente, em conjunto com as situações 1 ou 2, deveria estar evidente a impossibilidade de que recursos públicos a fundo perdido, como é regra, fossem usados para os investimentos necessários para aumentar as disponibilidades hídricas (situação 1) ou as possibilidades de lançamento de poluentes (situação 2) , o que certamente exigirá mudanças culturais, que também levam tempo.

Contestação à analogia entre Comitê de Bacia Hidrográfica e Condomínio Predial

Ao se aceitar as conclusões anteriores o leitor atento será levado a contestar a analogia adotada desde os primórdios da implantação da Política Nacional de Recursos Hídricos até hoje: a de que um Comitê de Bacia Hidrográfica se assemelharia a um condomínio predial, e que a cobrança seria análoga a uma taxa de condomínio, fixada pela deliberação conjunta dos condôminos. Esta analogia um tanto simplista, reduz a alta complexidade das questões tratadas em um Comitê e a imensa diferença de interesses que os usuários de água apresentam face aos moradores de um mesmo condomínio predial. Isto não seria tão grave se não levasse à crença de que um Comitê de Bacia Hidrográfica, tal como um Condomínio, poderia deliberar valores significativos de cobrança pelos usos de água face às demandas de investimento na bacia. Os fatos contradizem esta hipótese esperançosa e, portanto, tanto no Brasil como na França, esta analogia deve ser refutada, pelo bem dos avanços necessários dos Sistemas de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Incidências da cobrança: captação, lançamento e consumo

Na França a cobrança tem sido realizada mais recentemente sobre as captações e lançamentos de efluentes, eliminando a parcela de cobrança pelo consumo que é usada nos mecanismos brasileiros, com exceção do mecanismo adotado na bacia do rio Doce. Provavelmente esta decisão decorre da complexidade de definição do que é consumo de água, que ocorre tanto no Brasil, como deve também ter ocorrido na França, onde a simplificação dos mecanismos de cobrança teve uma prioridade na reforma realizada.
É comum se ouvir afirmações de que a irrigação não consome água, apenas a usa. A racionalidade é que a despeito dos grandes impactos que este uso causa nos regimes hidrológicos, a água retorna ao ciclo hidrológico seja por percolação/infiltração, seja por evapotranspiração, e que parcela ínfima fica incorporada aos cultivos. Da mesma forma, as empresas de saneamento muitas vezes alegam que suas perdas físicas de água, causadas por problemas de estanqueidade das redes de abastecimento, retornam ao ciclo hidrológico por percolação/infiltração e que este uso não deveria ser cobrado. Desta forma, poderá ser concluído que a maioria dos usos de água é pouco consuntivo, sendo que o consumo é apenas o que resta incorporado no processo de uso ou de produção.
É necessário, porém, relativizar estas argumentações, pois, em termos de gerenciamento de recursos hídricos, a questão relevante para fins de cobrança seria avaliar as alterações no regime hidrológico natural e necessidades correlatas de investimentos na bacia em obras para disponibilização de água, em quantidade e qualidade. Importa, portanto, que parcela da água captada retorna à bacia hidrográfica, e não ao ciclo hidrológico. Cabe, também, para todos os usos, avaliar com que qualidade a água retorna, para ser estabelecido o referencial de cobrança.
Existe também uma questão operacional que dificulta a estimativa dos consumos, que no Brasil é realizada subtraindo-se as captações dos lançamentos. Frequentemente, os usuários têm suas captações próprias, mas os seus lançamentos são realizados na rede pública de esgotamento sanitário. Isso acaba por caracterizá-los com lançamento nulo, o que levaria à estimativa de consumo igual à captação, algo não correto. Outra dificuldade, dada a questões de dominialidade de água no Brasil, dividida entre a União e as unidades federadas, leva a se realizar um cálculo de proporcionalidade para estimativa de consumo, para verificar a que parcela de água se deve aplicar a cobrança nos moldes da legislação federal, e a que parcela se deve aplicar nos moldes da estadual.
Por todos esses fatores, parece que os mecanismos franceses são mais razoáveis e simplificadores, ao aplicar a cobrança à captação e ao lançamento de água, fatores que realmente afetam o regime hidrológico quali-quantitativo dos corpos hídricos, algo que não se aplica ao consumo de água.

Cobrança do setor saneamento

A caracterização de uso de um bem público apenas pode ser alcançada se for entendido que o lançamento de esgotos no meio hídrico representa um uso de água, para diluição, afastamento e depuração. Nesse sentido, o conceito de vazão de diluição[2] poderia ser útil para essa definição, desde que possa ser compreendido pelo Comitê de Bacia Hidrográfica. No entanto existe uma falha neste processo, pois nem todo esgoto produzido é coletado no país – aliás, esta é uma das maiores carências brasileiras – e, portanto, mesmo que a cobrança não seja incitativa, poderia haver um bônus indevido às empresas de saneamento que tivessem menor índice de coleta. Isto seria parcialmente compensado pela cobrança pelo consumo – se ela existir -, pois, se não há lançamento, supõe-se que a água foi consumida, mesmo tendo ela sido descartada em fossas ou no solo[3]. Porém, como a cobrança pelo consumo é geralmente inferior à cobrança pelo lançamento, ficaria consignado o bônus indevido às empresas de saneamento que promovam baixíssimo índice de coleta de esgotos, o que vai na direção contrária aos anseios do sistema.
Desta forma, ao ser cobrada a produção de esgotos, contabilizada por usuário de água vinculado aos serviços de abastecimento prestados por uma empresa, como na França, promove-se uma maior coerência ao sistema de cobrança. Se o usuário será cobrado diretamente, na fatura emitida pela empresa de saneamento, ou a empresa será cobrada pelo montante total gerado pelos usuários, é uma questão operacional que pode ser discutida. A sua estimativa deveria ser realizada, inevitavelmente, por índices, como geralmente é realizado.
Tecnicamente, se a empresa repassar este ônus aos seus clientes, explicitamente – ou seja, anotando os valores na conta de água e esgotos – ou implicitamente - majorando as tarifas de água e esgotos - os resultados serão os mesmos. A restrição que se pode apontar a esta sistemática é que ao estimar os esgotos produzidos pelos consumidores de água potável por índices genéricos, que são aproximações da realidade e, por isto, não estimulam práticas que levem à menor produção de esgotos na fonte, até por ser difícil equacionar a eficiência destas práticas. Porém, pode-se propor que os grandes clientes das empresas de saneamento distintos dos residenciais, como indústrias, comércio e empresas públicas, poderiam ter um esquema de estimativa que avaliasse, se possível, a real geração de esgotos – factível no caso industrial – ou por meio de índices que levassem em conta os bons usos e conservação da água.

Bons usos e conservação da água

Esta é outra discrepância entre os sistemas francês e o brasileiro de cobrança pelos usos da água. A não ser no caso dos usos agropecuários, em que existe alguma espécie de subsídio às boas práticas, entende-se na França que as boas práticas fazem com que seja reduzida a cobrança, algo que garante automaticamente um bônus ao usuário de água.
No Brasil existe muita atenção a esses bônus, ou reduções de cobrança, pelas boas práticas de uso e conservação de água. Não muito diferente da França, os impactos da cobrança no Brasil são deliberadamente tão pequenos que não são incitativos à adoção destas práticas. Ou seja, a redução do valor cobrado em função de medidas de uso eficiente e conservativo das águas será geralmente inferior ao custo de adoção destas medidas. Desta forma, suas adoções por parte de um usuário somente serão economicamente viáveis, sob seu ponto de vista, quando os benefícios além da redução da cobrança pelo uso de água o justificarem. Por exemplo, quando envolve a adoção de uma tecnologia mais eficiente de produção, no meio industrial especialmente. Ou quando, na agricultura, podem ser reduzidas as tarifas de energia devido ao menor recalque de água, por exemplo.
Aos usuários de água que exportam seus produtos poderão existir barreiras extra-alfandegárias que estimulem a adoção de tecnologias conservacionistas no mesmo nível daqueles exigidos pela legislação comando-controle dos países importadores. E, finalmente, podem haver medidas de uso eficiente da água adotadas voluntariamente por usuários com base em premissas de responsabilidade social. Isto faz com que tais práticas entrem na classe dos Mecanismos de Adesão Voluntária - MAV.
Por tudo isto, parece que, nesse sentido, a França adotou um sistema mais realista: os bônus pela adoção de práticas conservativas são pouco adotados, a não ser no meio rural e de forma não clara, agregados aos grandes subsídios aportados ao setor por conta de políticas protecionistas. No Brasil, o discurso de adoção destes bônus parece ser ou gerado pela falta de conhecimento sobre a baixa efetividade que fatalmente terão – por não serem suficientemente incitativos para promover mudanças de comportamento -, ou por estratégias setoriais visando à redução dos valores cobrados, a despeito deles serem fixados, de antemão, para serem de baixo impacto econômico e financeiro.
Na França, mais de que a cobrança, os programas de intervenção das agências são os principais instrumentos para incentivar a adoção de práticas conservativas. Além dos subsídios, o apoio técnico e administrativo da Agência de Água é muitas vezes determinante. Tal apoio passa, por exemplo, pela elaboração e difusão de documentos técnicos, pela organização de discussões técnicas e seminários, pelo fomento à pesquisa, pelo conselho direto aos usuários da água, pelo apoio na redação de termos de referência, etc.
Desta forma, o que se entende como mais factível na situação brasileira é que os usuários estariam propensos a realizar os investimentos nas racionalizações de seus usos de água se esses valores forem considerados contrapartidas à cobrança pelos usos de água, sob a justificativa de serem aderentes a práticas de bom uso e conservação da água. Essas contrapartidas reduziriam, em um mesmo montante dos investimentos realizados, os valores de cobrança aplicáveis. Desta forma, seria consensuado que mais vale um sistema de cobrança que estimule o usuário investir no seu próprio negócio buscando a racionalização desejada do uso da água, do que onerá-lo com valores incitativos de cobrança. Obviamente, seria necessário implementar um sistema de acompanhamento / monitoramento da implementação dessas contrapartidas pela Agência.
A argumentação do parágrafo acima poderá ser contestada por teorias econômicas que apregoam que o usuário, tendo por base suas curvas de custo marginal, estabeleceria o ponto ótimo em que estaria disposto a investir na racionalização (abatimento da captação de água ou da poluição) e a partir do qual pagaria pelo uso. Dentro de uma visão teórica do processo este raciocínio é absolutamente correto. Na prática, porém, deve ser considerado que:
1.    Em boa parte dos casos o usuário não sabe com exatidão a sua curva de custo marginal, até mesmo por que ela é alterada permanentemente por flutuações nos preços dos insumos;
2.    O nível de tratamento de efluentes e, portanto, o custo marginal de abatimento da poluição, é fixado mais pelas exigências do licenciamento ambiental do que por considerações vinculadas ao princípio poluidor-pagador;
3.    Para estabelecer o nível de captação de água os custos de captação - incluindo tarifas pagas às concessionárias, quando for o caso, e a tecnologia de processamento - são os fatores geralmente mais relevantes para a decisão; 
4.    Boa parte dos usuários de água tem receios relacionados à destinação da arrecadação da cobrança, que vão desde questionamentos sobre a racionalidade das decisões do Comitê e sobre a eficiência operacional da Agência de Bacia em suas aplicações, até o receio de que ocorram desvios na sua destinação contrariando as deliberações do Comitê ou, mesmo, contingenciamentos.

Cobrança pela poluição

Um aspecto exemplar nos mecanismos franceses de cobrança pelos usos da água é o grande número de parâmetros considerados para qualificação dos efluentes, enquanto no Brasil, até o momento, adota-se tão somente a Demanda Bioquímica de Oxigênio. Percebe-se no país intenções de alargar o número de parâmetros, no mesmo sentido adotado pela França. A consideração de parâmetros como Fósforo, Nitrogênio e Coliformes é fundamental, devido a seu impacto nos recursos hídricos; para esses parâmetros, a modulação da cobrança em função das características do meio receptor tem grande importância para sua eficácia. Por exemplo, com o estabelecimento de cobrança maior nas zonas com problemas de eutrofização na França.
Nos mecanismos de cobrança adotados no Brasil existe a previsão de um coeficiente de lançamento Klanç que varia de acordo com a classe de enquadramento dos corpos de água que poderia de alguma forma penalizar os lançamentos onde a qualidade de água desejada é melhor. Contudo, até o momento, o valor desse coeficiente é unitário para todas as classes, perdendo-se esta possibilidade de diferenciação. Um passo adiante, além de fazer variar o coeficiente Klanç, seria prever igualmente o aumento desse coeficiente em trechos que se deseja controlar problemas de eutrofização ou de contaminação fecal, por exemplo, seja qual for a classe de enquadramento do trecho.
Outra diferença é que no Brasil cobra-se pela carga de DBO efetivamente lançada, ou declarada, enquanto na França houve uma evolução que sempre manteve distância deste critério brasileiro: inicialmente eram consideradas as cargas lançadas no mês de maior lançamento; em seguida passou-se a adotar uma média entre a carga média mensal e da carga do mês com maior lançamento. Esse critério penaliza os usuários que apresentam maior variabilidade nas emissões de poluentes, fazendo com que paguem adicionalmente a metade da diferença entre a poluição mensal máxima e a média. Esse é um critério interessante haja vista que os procedimentos para controle da poluição devem ser dimensionados considerando as cargas máximas lançadas e por isto é defensável que este valor máximo, de alguma forma, entre no computo dos valores a serem cobrados.

Medição de fluxos

A metodologia de cobrança pode incentivar a instalação de sistemas de medição dos fluxos de poluição nos efluentes. Na França, de modo geral, os coeficientes por tipo de atividade foram calculados de maneira a resultar em valores estimados sempre superiores aos valores reais de poluição da atividade, constituindo um incentivo ao monitoramento dos efluentes.
Para aprimorar os mecanismos de cobrança, a experiência francesa evidencia a importância do monitoramento dos efluentes e da qualidade das águas superficiais e subterrâneas. Por meio do monitoramento, a cobrança pode ser focada nos parâmetros que têm maior impacto nos recursos hídricos.

O que existe de positivo na experiência brasileira?

Na próxima postagem será apresentada a resposta a esta pergunta, mostrando o que existe de relevante na experiência de cobrança brasileira pelo uso de água até o momento, matizando um pouco as críticas até aqui realizadas.



[1] Esses chamados Mecanismos de Adesão Voluntária – MAV oferecem alternativas interessantes ao melhor gerenciamento de recursos hídricos e serão mais bem considerados adiante.
[2] Neste conceito, vazão de diluição seria a vazão necessária para diluição do efluente lançado por um agente até que atinja concentrações para todas as substâncias nele contidas que estejam nos limites da classe de qualidade em que o corpo hídrico estiver enquadrado; esta vazão de diluição seria, portanto, um proxy da carga lançada, para fins de cobrança pela poluição hídrica, com a vantagem de ser expressa nas mesmas unidades da vazão captada ou consumida.
[3] Deve ser relembrado que, por definição, o volume de água consumido é dado pela diferença entre o volume captado e o volume lançado. 

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